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Oncofertilidade: uma nova possibilidade para ter filhos após o câncer

Por Dr. Bruno Ramalho de Carvalho 07/03/2014

Tratamento que reúne conhecimentos em oncologia, endocrinologia reprodutiva e técnicas de reprodução assistida, a oncofertilidade pode ser uma alternativa para quem deseja ter um bebê após o câncer.

 

oncofertilidade

As estimativas do Instituto Nacional do Câncer para o biênio 2012-2013 prediziam a ocorrência de 385 mil casos novos de câncer por ano no Brasil (excluídos os cânceres de pele não-melanoma), dos quais 189.150 no sexo feminino, com destaque para tumores de mama, colo do útero, cólon e reto. Os registros de base populacional estimavam, ainda, mais de 11.500 casos novos anuais de câncer em crianças e adolescentes, com destaque para leucemias, linfomas e tumores do sistema nervoso central.

Mesmo com os números citados, felizmente, o aumento anual na incidência de casos de câncer no mundo é de 0,3%, enquanto os índices de cura aumentam cerca de 0,6% ao ano. As taxas globais de sobrevida no sexo feminino chegam a 85% para o câncer de mama em países desenvolvidos e mesmo países em desenvolvimento observam cifras próximas de 60%. Também considerados em geral de bom prognóstico, os tumores pediátricos respondem cada vez melhor aos tratamentos e a sobrevida média cumulativa em cinco nos atinge 62% a 77% em países europeus e nos Estados Unidos. Dessa forma, no cenário em que milhares de meninas, adolescentes e mulheres jovens com câncer submetem-se anualmente a tratamentos anti-neoplásicos bem sucedidos com quimioterapia (QT) e radioterapia (RT), é possível que já tenhamos entre nós um sobrevivente de câncer infantil para cada 250 indivíduos adultos.

Há muito tempo sabe-se que a quimioterapia e a radioterapia podem levar à falência funcional precoce das gônadas em mulheres jovens, e o hipoestrogenismo consequente, implicar infertilidade. A agressão ovariana mais grave é atribuída aos quimioterápicos alquilantes, como ciclofosfamida, mostarda L-fenilanina, clorambucil, nitrosouréias, melphalan, busulfan e procarbazina, por sua inespecificidade, o que depende não apenas do agente em questão, mas também da dose cumulativa. A outros agentes, como 5-fluorouracil, metotrexate, vincristina, bleomicina, dactinomicina, etoposide e doxorrubicina, atribuem-se lesões menos graves, que podem regredir em algum grau com o tempo. No câncer de mama, o risco de amenorréia pode variar de 6% para mulheres jovens submetidas a ciclos de doxorrubicina e ciclofosfamida a 70% para mulheres com mais de 30 anos submetidas a esquemas acrescentados de epirrubicina e/ou fluorouracil. A radioterapia, por sua vez, leva à falência ovariana mais de 60% de mulheres submetidas a doses maiores que 300 cGy, podendo também causar danos irreversíveis à vascularização e ao desenvolvimento uterino, este em crianças e adolescentes.

 

Oncofertilidade

 

A oncofertilidade é um campo de interesse interdisciplinar de surgimento recente, que busca mesclar os conhecimentos em oncologia e endocrinologia reprodutiva, com a contribuição das técnicas de reprodução assistida, para o desenvolvimento de estratégias de preservação da função gonadal e oferecer a possibilidade da maternidade (ou paternidade) biológica aos sobreviventes ao câncer.
Várias são as ferramentas de tratamento disponíveis, sendo a individualização a chave para escolha. oncofertilidade Assim, devem ser considerados fatores como idade do paciente ao diagnóstico, idade do paciente à época esperada para remissão da doença ou para a procriação, existência de parceiro sexual, tempo disponível e possibilidade de metástases, além, é claro, da quantidade de filhos já nascidos e do desejo de novas gestações.

O médico de qualquer especialidade deve estar apto a fornecer à sua paciente e seus familiares as primeiras orientações sobre o assunto em questão, antes mesmo de encaminhar ao profissional especializado. Ao especialista atuante em oncofertilidade cabe elencar entre as alternativas disponíveis aquelas pertinentes a cada caso. Ao seu alcance estão as estratégias de proteção hormonal, transposição ovariana cirúrgica, congelamento de embriões, óvulos e sêmen, além do experimental congelamento de tecido ovariano.

 

Proteção hormonal

 

A proteção ovariana pela administração de análogos do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH) baseia-se na simulação do estado pré-puberal, quando os ovários encontrar-se-iam em repouso funcional. Embora leve a resultados controversos, ainda é uma estratégia praticada, pois, além de permitir abordagem imediata, não demanda a existência de um parceiro sexual, não afeta tumores hormônio-dependentes e não requer estrutura cirúrgica ou laboratorial para sua conclusão. Ainda, pode ser benéfica na medida em que a castração química temporária costuma evitar os fluxos menstruais excessivos, secundários à trombocitopenia induzida pela quimioterapia.
A prática da proteção hormonal tende a ser abandonada com o avanço dos tratamentos em reprodução assistida, mas entende-se hoje que, se indicada, seria um meio de preservar óvulos apenas de pacientes submetidas à quimioterapia, sendo muito pouco eficaz frente à agressão radioterápica. Atenção deve ser dada à massa óssea das pacientes submetidas ao tratamento, que tende a diminuir de forma significativa em estados hipoestrogênicos prolongados, podendo ser aconselhável a terapia hormonal adjuvante.

 

Transposição cirúrgica dos ovários

 

A transposição cirúrgica dos ovários restringe-se como estratégia para pacientes candidatas à radioterapia exclusiva e consiste em elevar os ovários e fixá-los próximos aos pólos renais inferiores, fora da pelve e de eventual campo de irradiação. Como a quimioterapia está indicada em grande parte dos tratamentos anti-neoplásicos, tem caído em desuso, podendo ser útil em tumores da cérvice em estados iniciais e linfomas candidatos à radioterapia localizada. Limita ainda mais o método a possibilidade de ocorrerem acotovelamentos ou estiramentos vasculares que implicariam obstruções de fluxo e lesão isquêmica ovariana de gravidade potencialmente alta.

 

Congelamento de embriões

 

O congelamento de embriões é o método de preservação fertilidade mais utilizado em todo o mundo, com sobrevivência embrionária ao descongelamento de até 80%, taxas de gravidez de 29% a 43% e nascidos vivos em 22% a 32% dos casos, a depender de características individuais de melhor ou pior prognóstico reprodutivo. Dessa forma, pode-se dizer hoje que o congelamento de embriões confere chances de sucesso semelhantes às obtidas com embriões frescos.

Uma importante limitação do método seria a necessidade de adiamento do tratamento antineoplásico em 2 a 6 semanas, para a estimulação ovariana, que idealmente deve ser iniciada nos primeiros dias oncofertilidadedepois da menstruação natural. Contudo, protocolos de estimulação ovariana de início a qualquer tempo do ciclo menstrual têm sido desenvolvidos e já utilizados em grande escala, marcando um grande avanço da medicina reprodutiva e solucionando o problema.

Como desvantagens, a indução de ovulação para o congelamento de embriões pode estimular tumores hormônio-dependentes e implica a existência de um parceiro sexual ou o uso de sêmen de doador anônimo, aspectos que contra-indicam o método para crianças e adolescentes. Para os casos específicos de neoplasias hormônio-dependentes, vários estudos têm documentado o uso do letrozol (um inibidor da enzima aromatase) e do tamoxifeno (um modulador seletivo do receptor estrogênico) como alternativas à estimulação hormonal tradicional, sem aumento aparente da recorrência do câncer em curto prazo e com resultados satisfatórios.

 

Congelamento de óvulos

 

O congelamento de óvulos assume grande importância ao eliminar dilemas éticos, legais e religiosos que envolvem o congelamento de embriões. Dessa forma, torna-se particularmente interessante para mulheres sem parceiro fixo e que não aceitam a fertilização de seus óvulos por gametas de um doador anônimo, ou que por questões pessoais sejam contra o congelamento de embriões. Além disso, assume papel de destaque dentre as opções de preservação de fertilidade em adolescentes, já que estas, de modo geral, ainda não possuem parceiro seguro com quem pretendam constituir prole.

A evolução do conhecimento sobre o congelamento de óvulos maduros foi muito significativa nos últimos anos, com sobrevivência quase total dos gametas após o descongelamento. De acordo com recente levantamento norte-americano, as taxas de fertilização e gravidez são de 67% e 33%, respectivamente, ou seja, os resultados reprodutivos já são muito próximos dos obtidos com gametas a fresco.

Novamente, o tempo disponível para início do tratamento antineoplásico seria um ponto crucial para a escolha, haja vista também haver necessidade de estimular os ovários. Aqui os protocolos rápidos de estimulação também são aplicáveis. Uma outra solução para o problema seria o desenvolvimento da maturação in vitro de óvulos colhidos de ovários não estimulados e, portanto, imaturos. Infelizmente, a tecnologia de maturação de óvulos in vitro ainda precisa evoluir e os resultados não permitem que a estratégia seja padronizada como tratamento, permanecendo na esfera experimental.

 

Congelamento de ovário

 

O congelamento do córtex ovariano ainda é considerado técnica experimental, mas já conta com 19 nascimentos em países onde a pesquisa encontra-se em etapas mais avançadas. Surge como opção de preservação da fertilidade em grupos específicos de pacientes para as quais as demais técnicas não são recomendáveis: pré-púberes, mulheres sem parceiro fixo e que não aceitam a fertilização de seus óvulos por gametas de um doador anônimo, ou que por questões pessoais não desejam ser estimuladas hormonalmente.

Ainda, por dispensar estimulação ovariana, a estratégia posta em prática atenderia muito bem portadoras de neoplasias hormônio-dependentes ou que necessitam de abordagem imediata, para as quais o tempo necessário para indução da ovulação, mesmo em protocolos considerados rápidos postergaria o início do tratamento de forma lesiva. Particularmente sob esse aspecto, a coleta do tecido cortical ovariano para congelamento oferece a vantagem de poder ser realizada em qualquer momento do ciclo menstrual, por procedimento de videolaparoscopia, e possibilitar a aquisição de centenas de milhares de folículos primordiais.

Pretende-se tornar viável o reimplante do tecido congelado depois da remissão, podendo-se obter gravidezes até mesmo por método natural. A grande limitação está, ainda, no risco presumido de que o tecido congelado reimplantado contenha focos metastáticos que possam levar à reincidência do câncer, embora não existam relatos nos casos até hoje realizados.

 

 Qualidade de Vida

 

Não restam dúvidas de que os maiores benefícios quando se fala em preservação da fertilidade depois de um câncer são os psicoemocionais, já que a impossibilidade da maternidade biológica é motivo de grande angústia e realça a impotência sentida perante uma doença em geral grave. Preservar a função oncofertilidadeovariana e, assim, a fertilidade contempla a intenção de prover a melhor qualidade de vida possível aos sobreviventes ao câncer, principalmente no Brasil, em que a população é jovem e muitas pacientes terão a doença antes de constituir a prole.

 

 Aspectos éticos

 

A segurança para a paciente é a principal consideração ética a ser feita ao se instituir uma proposta para preservação da função ovariana às mulheres sobreviventes ao câncer, pois de nada adiantará tentar preservar sua fertilidade se não houver o bem-estar físico necessário para a maternidade saudável.

Os princípios da autonomia, da beneficência e da não-maleficência devem traçar o rumo da estratégia escolhida, respeitando, inclusive, a opinião da criança se esta tem condições de compreender o que se passa. Em qualquer contexto, em que imperam incertezas e a possibilidade de óbito da paciente, é de extrema importância o seu pleno esclarecimento, bem como dos seus responsáveis legais e familiares envolvidos no processo, além da documentação do consentimento livre e esclarecido para todas as etapas.

Por fim, a abordagem deve contemplar questionamentos a respeito do período de armazenamento dos gametas, embriões ou tecidos congelados em bancos, bem como seu uso póstumo e a doação para receptores ou pesquisas, que encontram respaldo ético, mas comumente permanecem como dilemas pessoais.

 

Considerações finais

 

A esperança de poder gerar uma criança após um câncer é fator de melhora da auto-estima e pode até mesmo contribuir para a melhor aceitação do tratamento antineoplásico e seus efeitos adversos. Entretanto, o risco de insucesso deve ser esclarecido, pois não se garantem pelos meios atuais que gametas e gônadas sejam protegidos por intervenções hormonais e cirúrgicas, ou resistam às técnicas de congelamento.

Considerando-se a vulnerabilidade e a imensa pressão psicoemocional geradas por um diagnóstico de câncer, e sua interferência significativa na capacidade de compreensão e aceitação do paciente e seus familiares, a interdisciplinaridade torna-se fundamental para a abordagem adequada em oncofertilidade. Integrando-se a atuação de médicos oncologistas, ginecologistas e especialistas em reprodução humana, psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais de saúde, as decisões, certamente, serão acertadas.

 

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