Falar de violência familiar nos remete a uma série de questões relacionadas ao papel da família na sociedade. Pois diante do pressuposto de que a família é um lugar de proteção, de refúgio, de acolhimento e de segurança, torna- se difícil relacionar esse lugar a um lugar de violência, de medo, e até mesmo de perigo.
Novas construções no universo familiar
Podemos observar novas construções do universo familiar, que se refletem também no espaço público e na sociedade como um todo. Nos últimos anos a família, tanto brasileira quanto em todo o mundo, passou por diversas transformações em seu interior, em sua dinâmica. Dentre elas podemos destacar o ingresso da mulher no mercado de trabalho; o incremento da proporção de casais maduros sem filhos, reduzindo seu tamanho; a multiplicação dos arranjos que fogem ao padrão tradicional da típica família nuclear, como mães e pais solteiros, em especial as famílias chefiadas por mulheres sem cônjuge, e também irmãos postiços, padrastos, madrastas, etc.
Família como referência
Segundo Hebe Signorini Gonçalves, no Brasil a família é uma forte referência da subjetividade e a esta cabe regular a conduta dos seus membros diante da sociedade. Esta se torna não somente a base para a formação de suas relações, como também uma estrutura de apoio social diante das mazelas impostas pela sociedade. Assim, o reforço no privado e a retração do público fazem com que se concentrem no sujeito e no núcleo familiar as forças de agregação social; hoje é trazido para a família as expectativas que antes eram postas em outros órgãos sociais; como por exemplo, busca-se nesta, apoio e suporte em um amplo sentido, como para poder estudar e se preparar adequadamente para o mercado de trabalho e conseqüentemente garantir um bom futuro.
Falando desse controle exercido pela família no sujeito, podemos mencionar o higienismo, que fazia a associação da disciplina exercida no campo doméstico ao controle sobre o sujeito no espaço público. Assim, esse movimento trás influências ainda marcantes na cultura brasileira, pois de fato as mães acreditam que podem proteger os filhos no privado contra as ameaças do público, e disciplinar o que se configura no âmbito social a partir do doméstico. Pois, na ausência de um estado protetor, a família surge como base, e como referencia para a formação de identidades.
Espaço de proteção?
O higienismo constituiu a família como espaço de proteção privada, a instituiu como lugar de ensinamento, proteção, segurança contra o exterior e colocou a mulher no espaço doméstico como cuidadora, detentora de um poder sobre o homem, sobre os filhos, sobre o “lar”. Esta deixou de fazer concorrência ao homem e ser rival dos filhos, e passou a ser quem organiza e matem o lar, distanciando o homem dos lugares não dignos.
Para Jacques Donzelot, as técnicas instauradas por esse movimento objetivam dirigir a criança e a família como um todo para um espaço de maior vigilância, que além da escola, é o contexto familiar, sendo visto a partir de então como um espaço destinado a segurança e proteção.
O movimento higienista ainda hoje deixa suas marcas na nossa cultura, pois este visualizou como solução de certos malefícios, a “educação”, que segundo sua ideologia, poderá promover novos horizontes fazendo com que os indivíduos voltem a educar seus filhos ao invés de entregá-los ao estado ou as nutrizes.
Assim, a família se configura no privado, afastando-se do ambiente externo e suas “más” influencias, se configurando no modelo de pais residindo com seus filhos onde cada um dos membros passa ter seu devido espaço físico no interior dos lares, e onde um olhar de maior vigilância sobre cada um passa a ser relevante.
Violência doméstica
Com isso, no Brasil, até os anos setenta era muito mais difícil trabalhar com a questão da violência doméstica, pois na cultura presente imperava a ideia de que a nível familiar ninguém deve se intrometer, independente de qual fosse a gravidade do problema.
Diante seja de qual for a violência ocorrida no âmbito familiar, tem-se o debate sobre o papel da mãe, do marido, da esposa e de seus direitos como tal, permitindo a estes exercer determinado poder sobre os seus, poder esse que muitas vezes abre espaço para questionamentos. Assim, se configura uma cultura que de certa forma impede o aparecimento de atitudes violentas em público e mesmo quando este acontece, dificulta-se o implemento de ações punitivas para dados casos de violência ocorridos no meio da família.
Assim, a partir dessa década, com maior força do movimento feminista e uma série de transformações no ambiente social, a violência doméstica em sua amplitude começou a ser combatida com mais ênfase, começou a “aparecer” no público, saindo do ambiente privado. Medidas mais efetivas puderam ser estabelecidas, dentre elas, podemos destacar a lei Maria da Penha em 2006, que trás proteção a mulher que sofre violência por parte do cônjuge e o também o ECA, (Estatuto da Criança e do Adolescente), em 1990, que especifica os cuidados e a proteção devida as crianças e aos adolescentes.
Busca por medidas efetivas
O que tem sido feito ainda não é suficiente, o espaço dessa luta está em vigente crescimento e muitas medidas ainda tem que ser implementadas. Isso não só a nível da violência de gênero, mas a nível da violência contra a criança e adolescente, que também tem seu devido destaque no âmbito familiar.
Esta tem que ser investigada com mais ênfase, no sentido de que o olhar direcionado a ela deve ser ampliado, não se reduzindo simplesmente a vítimas e agressores, mas se remetendo ao todo, ao contexto social a ela relacionada.
Pode se afirmar também que medidas efetivas tem de ser tomadas. Antes disso, questionadas e problematizadas, visando soluções plausíveis para todo e qualquer ato violento ocorrido no meio da família. Não permitindo que atos de violência se configurem no ambiente privado e ali se mantenham somente pelo fato do nível familiar ser considerado um lugar de proteção para o indivíduo, onde ninguém que esteja fora dele deva se intrometer.
